Após o resultado das eleições presidenciais no dia 30 de outubro, grupos organizados do bolsonarismo bloquearam as rodovias de Santa Catarina e também as ruas em frentes aos quartéis militares, inflamados sobretudo pela retórica fascista e com financiamento de setores do agronegócio, empresariado do terceiro setor e de transportadoras. Foram registrados quase 100 pontos de bloqueio na segunda-feira (31 de outubro), tornando o estado um dos maiores representantes do golpismo bolsonarista, um cenário que se mantém até hoje com pessoas de verde e amarelo clamando pela intervenção militar, sobretudo em cidades como Joinville – onde o clamor intervencionista parece mais uma feira das classes média e alta da cidade.
Passados mais de 15 dias da vitória da chapa Lula-Alckmin, que já demonstra se curvar aos interesses do empresariado e busca reviver o pacto de conciliação de classes dos primeiros governos petistas, como é possível verificar com as composições das comissões de transição com nomes ligados ao capital, há ainda uma forte crença que as urnas foram fraudadas, mesmo depois do parecer do Exército. Em SC, além de figuras como Luciano Hang, empresas de transporte, Câmaras de Dirigentes Logistas (CDLs) e empresários tem exercido papel fundamental em promover tal lógica golpista. Transportadoras têm colocado caminhões nas ruas, CDLs têm feito manifestações favoráveis aos bloqueios e empresários têm liberado trabalhadores para que participem das ações.
Segundo os grandes meios de comunicação estaduais e o Ministério Público de Santa Catarina, pelo menos doze empresários e agentes públicos envolveram-se nos bloqueios. Cabe ressaltar que o governo Bolsonaro realizou políticas para atender interesses das empresas de transporte, como a retirada dos radares, modificações no transporte de cargas e flexibilização na fiscalização da jornada de trabalho das pessoas que trabalham como motoristas de carga e passageiros. Somado a isso, há um apego à lógica militarista e policialesca, que se mistura com uma narrativa de povo trabalhador e ordeiro de berço europeu. O bolsonarismo nessas terras se encontra com o nazifascismo fortalecido na ilusão da herança européia.
A relação da classe dominante com a extrema-direita é presente na formação histórica da sociedade catarinense. O processo de colonização foi responsável pelo genocídio das populações indígenas Guarani, Xocleng e Kaingang, acompanhado da escravização da população negra no contexto escravocrata, mesmo com a abolição formal da escravidão que ocorreu em 1888, e realizou um intenso apagamento das suas histórias e contribuições. No contexto da transição do século 19 para o 20, na região da fronteira entre Paraná e Santa Catarina, a população cabloca fez da sua fé, organização territorial e popular uma forma de resistência contra a República dos brancos e o seu exército, fortemente apoiados pelo capital internacional. Foram massacrados.
Entre os anos de 1920 e 1940, setores das elites catarinenses abraçaram o fascismo italiano, o nazismo alemão e a sua versão brasileira, chamada integralismo, elegendo prefeitos e vereadores integralistas em cidades como Joinville e Jaraguá do Sul. Todo este processo com as benções das hierarquias das igrejas Católica e Luterana. No período da ditadura civil-militar (1964 – 1985), os interesses dos capitalistas catarinenses abraçaram o “medo do perigo comunista” e organizaram o apoio financeiro para propaganda durante a repressão ditatorial. Enquanto isso, as políticas dos governadores, junto aos militares em Brasília, injetavam dinheiro público para o crescimento industrial de uma pequena parcela de ricos patrões. No processo da “redemocratização burguesa”, o empresariado deixou o seu sonho fascista restrito ao âmbito das reuniões empresariais, enquanto a gestão das suas empresas mantinham a exploração.
Nesse contexto, vale destacar que a partir da proximidade da classe empresarial com a lógica de frustração política oferecida por um bolsonarismo em declínio, é possível observar uma tendência de fortalecimento e organização de setores da direita. O financiamento empresarial pode oferecer as condições necessárias para o aumento na capacidade de ação e organização de grupos de direita, algo que torna preocupante a capacidade de articulação e resposta dos setores de esquerda. Assim, com a frustração que virá da ineficácia do plantão em frente aos quartéis, podemos lidar com um crescimento ainda maior das células nazistas e fascistas no estado, que podem se apresentar como solução, ao organizar e absorver esses sujeitos-soldados do bolsonarismo, ou mesmo pela referência em figuras públicas que tomam a frente nas atuais ações de rua.
Dos mais de 5 milhões de eleitores em Santa Catarina, quase 70% votaram em Jair Bolsonaro. Porcentagem parecida pode ser observada em outros estados, como Acre e Rondônia, porém, a repercussão da base organizada do bolsonarismo tem outro eco dada a história catarinense. Recentemente, tivemos casos emblemáticos de nazismo na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade da Região de Joinville (Univille). A prisão de integrantes de células nazistas no estado repercutiu nas mídias nacionais, escancarando o nazifascismo que permanece no estado há quase um século. A xenofobia não é novidade no estado, ainda que parte da classe trabalhadora essencial para o enriquecimento da burguesia local seja oriunda de outras lugares: interior do Paraná; de estados do nordeste, sobretudo Bahia, Pará; e migrantes de outros países, como Venezuela e Haiti.
Assim, quando nos deparamos com a lógica do bolsonarismo, observamos que sua estrutura absorve elementos historicamente sustentados pela extrema direita, como xenofobia, racismo, patriarcado, intolerância religiosa, defesa da família, no sentido mais tradicional e excludente do termo, prioridade do privado sobre o público, entre outros. No estado de SC esses elementos ecoam de forma ainda mais preocupante, uma vez que estão presentes na formação social catarinente. Ao mesmo tempo, porém, a figura de Bolsonaro foi importante para dar nova substância a esses elementos que historicamente se mantém presentes nas dinâmicas da extrema direita.
Desde sua eleição à presidência em 2018, observamos que seu mandato foi atravessado por aspectos que reforçam o imaginário da extrema direita e remontam inclusive ao período da ditadura civil-militar no Brasil, ao retomar a força do conservadorismo e do militarismo. Este último, vale ressaltar, foi útil também para consolidar uma ideia de que o movimento bolsonarista seria descentralizado, quando, na verdade, o que existiu/existe são comandos específicos de ação e informação.
De maneira mais específica, o bolsonarismo soube usar a seu favor, e com alguma cruel perspicácia, instrumentos de comunicação que jogaram papel decisivo na desinformação constante sustentada durante esses quatro anos de seu governo. A máquina de fakenews foi um recurso dos mais utilizados pelo clã Bolsonaro, ao disseminar diariamente uma rede de notícias falsas, que alimentava o imaginário de parcela expressiva da população com mentiras e invenções a respeito de diversos assuntos. Inclusive, na organização dos recentes bloqueios após o fim das eleições presidenciais de 2022, foi possível observar o impacto das fakenews na própria base de apoiadores do bolsonarismo, que chegou a comemorar notícias falsas, como a suposta prisão do ministro Alexandre de Moraes [2].
Nesse sentido, vale entender esse conjunto de elementos a partir do que se convencionou chamar de bolsonarismo, de maneira a conectar e até culpabilizar a figura de Bolsonaro pelos resultados catastróficos de seu (des)governo, mas, por outro lado, é preciso estar atentas aos aspectos históricos e de continuidade da extrema direita, especialmente no estado de SC. Com a derrota de Bolsonaro nas urnas, o que devemos observar é uma reestruturação dessa base conservadora, que deverá manter a defesa de uma sociedade desigual, conservadora, racista e xenófoba, reforçada pelos interesses econômicos do empresariado catarinense.
Cabe ao conjunto da militância anarquista residente na região buscar formas de organizar-se em suas entidades sindicais, comunitárias, estudantis e construir um projeto de superação da exploração e dominação capitalista e estatal. Somar nas iniciativas populares, anticapitalistas, antirracistas, antissexistas e em solidariedade ao conjunto das lutas das classes oprimidas. O CABN (Coletivo Anarquista Bandeira Negra), integrante da CAB (Coordenação Anarquista Brasileira), se coloca como uma iniciativa organizativa da companheirada anarquista dentro da perspectiva latinoamericana do especifismo, com unidade teórica e prática, para construirmos um mundo de socialismo com liberdade, autogestão, federalismo e solidariedade.
Santa Catarina, 18 de novembro de 2022
dezembro 8th, 2022 → 06:20
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