O grande teatro conjuntural

Posted on 05/08/2019 by

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No dia 12 de julho, um conjunto de companheiras e companheiros de diferentes países da América Latina se reuniu no Ateneu do Cerro, em Montevidéu, Uruguai, para conversar sobre a conjuntura nos distintos países e sobre as lutas que temos travado por um novo mundo, socialista e libertário. 
A peça abaixo, adaptada, foi a contribuição do Coletivo Anarquista Bandeira Negra para esse momento.

 


O GRANDE TEATRO CONJUNTURAL

Peça em processo, que precisa da colaboração de pessoas dispostas a transformar a trama de modo que a resolução não seja mais uma farsa burguesa.

PERSONAGENS

  • Pessoas de baixo: pessoas negras, brancas, indígenas, vestidas em paletas de cores iguais às da plateia que fica na parte onde os ingressos são mais baratos
  • Claque, a equipe dedicada a aplaudir o espetáculo: maioria branca, vestida de verde e amarelo
  • Super-homem de toga e cueca por cima da calça
  • O palhaço Bozo
  • Os atores de sempre: ao contrário do Bozo, esses não fazem piadas; são personagens sérios, que mexem com leis e planilhas
  • Jornalistas
  • Seguranças e guarda-costas-quentes, fardados ou não

CENÁRIO

Palco italiano: quando as cortinas se abrem, vemos que existem vários níveis em que os atores se posicionam.

O ritmo das cenas em primeiro plano é uma dança alucinante, enquanto no fundo do palco vão passando os atores de sempre, famosos por atuarem em dramas, comédias e tragédias anteriores, sempre em seus papéis tradicionais, caracterizados por muitos tapinhas nas costas e apertos de mão – mãos que pingam com sangue de indígenas, de negras e negros. Os atores de sempre são protegidos pelos guarda-costas-quentes.

O chão do palco é um imenso mar de lama. Lama da Vale, lama que vem de barragens estouradas: cidades inteiramente destruídas vão passando pelo palco, escorrendo pra plateia. Em outras partes do chão do palco, a cada minuto vão diminuindo as árvores e os rios, virando tudo cinza ou verde fosforescente pelos agrotóxicos que personagens espirram a torto e a direito como padres ou pastores colonizadores que querem abençoar indígenas.

Na parede do fundo se projetam lives e vídeos do palhaço Bozo, numa estética parecida com os vídeos do Estado Islâmico: homens falando detrás de uma mesa.

No topo do palco, pende uma grande faixa com um lema escrito em verde amarelo, pingando sangue: Brasil acima de tudo, Deus acima de todos… No centro do palco, o pahaço Bozo, de forma patética, bate continência para milicos ianques.

PRÓLOGO

Um coro de atrizes e atores se ergue de baixo e declama:

Essa peça é um pastelão,
quem assiste diz “Ai não!
Tão de novo me enganando!”

Muitas cenas são patéticas…
Outras, totalmente trágicas
Mas com a nossa atuação,
no fim, a resolução
pode muito bem ser épica!

Com o povo em coro forte,
protagonistas rebeldes,
cenas bem organizadas
pode haver reviravolta:

em vez de farsa ou tragédia
uma obra libertária!

PRIMEIRO ATO

CENA 1

Homens brancos vestindo capas percorrem o palco fazendo ataques a pessoas idosas, trabalhadoras, estudantes, indígenas, quilombolas. Um senhor sentado atrás de uma mesa, fumando um cigarro e tomando uma coca-cola, faz um vídeo à frente de uma bandeira ianque.

Atores vestindo verde e amarelo, em uma plataforma que fica mais alta no palco, não param de aplaudir as cenas violentas.

Nas partes periférias do palco, onde a lama e o agrotóxico se acumulam com mais intensidade, as pessoas levantam as vozes e os braços em reuniões e assembleias.

CENA 2

Um redemoinho cênico passa pelo teatro inteiro, tentando envolver as pessoas da periferia do palco e da plateia de baixo para fazer parte de um outro pastelão que está sendo representado em um teatro próximo: a peça se chama “luta livre”, algo assim, mas há um aviso que, se você quiser lutar, não pode entrar naquele espaço.

Em um camarote, homens brancos tomam uísque e fumam charutos com sensação de missão cumprida.

CENA 3

A lama e o sangue do palco contrastam com um cubículo em um canto da periferia, com som ensurdecedor de microfone, onde o chão é mantido muito limpo. Um homem promete que é possível tirar o pé da lama e pisar em nuvens, basta dar uma contribuição mensal e confiar na trupe de palhaços. 

Todas são convidadas para viver em paz e harmonia nas nuvens! (Menos as lésbicas, as trans, as bichas, as mulheres livres, as pessoas que não leem O Livro Certo, as maconheiras, as subversivas…)

CENA 4

Um homem vestido de super-homem e toga de juiz aponta pra plateia de baixo, pois algumas pessoas estão tentando subir no palco, e manda os seguranças prenderem elas. Os seguranças formam um paredão, impedindo a plateia de baixo de assistir grande parte do que está acontecendo nele.

Ao fundo do teatro, ouvem-se ruídos de botas marchando. O palhaço Bozo faz piadas no centro do palco, rindo de nordestinos, de mulheres e de pobres que morrem antes mesmo de se aposentar. Não tem graça nenhuma. Atrás dele, projeta-se a sombra de milicos apontando o dedo para a plateia de baixo e para as atrizes da periferia do palco, que erguem faixas e gritam GREVE GERAL.

CENA 5

Jornalistas, seguranças, guarda-costas-quentes e os atores de sempre, que estavam dando tapinhas nas costas no fundo do palco, agora se colocam na frente do palco fazendo gestos para acalmar os ânimos. Enquanto isso, as cortinas se fecham como se nada estivesse acontecendo.

SEGUNDO ATO

CENA 1

Antes da cortina se abrir, projeta-se na cortina uma série de mensagens de celular em que personagens de terno e toga combinam a trama da peça. Quando a plateia de baixo começa a se revoltar, os seguranças voltam a formar um paredão e as cortinas se abrem, revelando novamente as cenas alucinantes do primeiro ato.

CENA 2

O super-homem de toga pede silêncio para fazer um monólogo, mas sua dicção não é boa e a plateia não entende. Os seguranças arrastam para o palco quatro pessoas, que afirmam serem as responsáveis pela projeção das mensagens que deram spoiler da trama da peça.

CENA 3

O palhaço piora o nível das piadas machistas, racistas, LGBTfóbicas, enquanto os atores de verde e amarelo riem forçadamente. O super-homem tira do bolso uma folha onde se lê “666”, e os seguranças passam a cercar um jornalista. Canhões de gelo seco criam uma cortina de fumaça tóxica no teatro inteiro.

CENA 4

O barulho de botas marchando se intensifica, mas vemos que algumas atrizes não se intimidam e começam a dançar às costas dos milicos. Jornalistas assistem anotando freneticamente em seus tablets, filmando, falando em celulares. Estão de costas para um canto do palco onde não há iluminação, mas nesse canto do palco um grupo de pessoas está resistindo há mais de 500 anos contra os seguranças, os atores de sempre, os guarda-costas-quentes e a claque.

CENA 5

As atrizes da periferia do palco chamam as pessoas da plateia de baixo para subirem no palco. Confusão, barulheira. No meio disso tudo, é possível ouvir uma fala:

ATRIZES EM CORO: Quantos atos terá essa peça? Será que vai ter cinco atos como as tragédias antigas? Será que vai ter três atos como dramas do século passado? Ou será que a gente vai conseguir usar o que aprendemos com o Teatro do Oprimido e acabar com essa divisão entre palco e plateia, entre protagonistas e público?

Posted in: Análise Social