Feminismo e luta das mulheres no Brasil e Latino América

Posted on 14/01/2024 by

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“De que vale a igualdade de direitos jurídicos e políticos para meia duzia de privilegiadas, tiradas da própria casta dominante, si a maioria feminina continua vegetando na miséria da escravidão milenar?

É preciso sonhar mais alto ainda e abranger todo o mundo feminino no mesmo laço de igualdade social, no mesmo beijo de solidariedade humana, no mesmo anseio para a Fraternidade Universal.

Enquanto houver uma só pária, enquanto houver uma mulher sacrificada, enquanto houver crianças famintas, mulheres escravas do salário – nós, idealistas, não temos senão o dever de pensar, de sonhar, de agir para o advento de outra sociedade, em busca de outros sonhos para a vida maior.”

Maria Lacerda de Moura. “A mulher é uma degenerada”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1924, p. 12.

“Fartas já de tanto e tanto choro e miséria, fartas do eterno e desconsolador retrato oferecido pelos nossos pobres filhos, esses pedacinhos queridos de nosso coração, fartas de pedir e suplicar, de ser o brinquedinho, o objeto dos prazeres dos nossos infames exploradores ou de cruéis esposos, decidimos erguer a nossa voz no concerto social e exigir, dizemos exigir, a nossa parte de prazeres no banquete da vida.”

Jornal LA VOZ DE LA MUJER, Buenos Aires, 8 jan. 1896

Esse texto tem por intuito mostrar as proximidades entre o movimento feminista – ou pautas lidas como feministas – e o movimento anarquista no Brasil e na América Latina. É um texto introdutório para conhecer o assunto e convidamos para que se aprofundem no tema a partir da bibliografia. E tendo como esse o objetivo, acreditamos que as citações iniciais nos ajudam a pensar essas relações de proximidade e perceber que elas existem a muito tempo, desde o início de ambos os movimentos no continente.

Maria Lacerda de Moura1 (1887-1945) foi uma importante anarquista, educadora e militante pelos direitos das mulheres do início do século XX no Brasil. Escreveu diversos livros sobre a condição feminina, educação e política, assim como participou em diversas organizações. Contribui ativamente para o jornal A Plebe, por exemplo, e se aproximou do movimento sufragista, que postulava o direito ao voto pelas mulheres2. A citação que inicia esse texto é de um de seus livros, A mulher é uma degenerada, onde argumentou contra a ideia de que as mulheres seriam biologicamente e moralmente inferiores aos homens. Maria Lacerda de Moura é lembrada até hoje também por discutir temas que não era comuns para o movimento sufragista do período, como a ideia de amor livre (entendida enquanto oposto ao amor burguês, à indissolubilidade do casamento e à maternidade compulsória) e a ideia de que há uma moral burguesa e católica que busca confinar as mulheres ao espaço doméstico.

Apesar de ser uma figura importantíssima na história do anarquismo e do feminismo no Brasil, devemos pensar que ela não estava “a frente de seu tempo”, mas dialogando com companheiras e companheiros, olhando a sua volta e buscando construir um outro mundo possível. Chama atenção como os temas de seus escritos lembram Emma Goldman, por exemplo3. Mesmo assim, para não pensar que essas ideias circulam apenas vindas do países do norte (Europa e EUA) para cá, a segunda citação mostra que já aqui na América Latina existia uma tradição de mulheres anarquistas discutindo sobre a condição feminina.

Fotografia de Maria Lacerda de Moura, sem data.

A VOZ DAS MULHERES ANARQUISTAS NO DEBATE ARGENTINO

O jornal argentino La Voz de La Mujer é um desses importantes registros das lutas das anarquistas desde o século XIX. Primeiro jornal feminista anarquista da Argentina, seu lema era “Nem deus, nem patrão, nem marido”, sintetizando de forma nítida os inimigos de uma verdadeira liberdade. A citação que inicia o texto é da primeira edição do jornal e demonstra a busca das mulheres, elas mesmas, por uma vida digna, além de já indicar os problemas pessoais enquanto políticos, quando aponta os maridos como também instrumentos da dominação que as mulheres sofrem na sociedade. Essa, acredito, seja o grande feito das mulheres anarquistas, apontar para como as relações pessoais também são permeadas de política e devem elas também se transformarem para que a revolução social de fato seja para todas e todos.

É esse ponto também que gerará, desde aquela época, tensões com os companheiros anarquistas, que ao observar a luta de suas companheiras se sentiram muitas vezes acuados e acusados: como um anarquista poderia ser ele próprio um opressor? Um artigo em uma edição posterior do jornal, as editoras comentaram sobre a recepção por parte dos homens anarquistas em relação ao jornal:

Saiu o primeiro número de “La voz de la Mujer” e, óbvio, foi um escarcéu! “Nós não somos dignas disso tudo não! Não senhor!”, “a mulher quer se emancipar?, pra quê?”, “que emancipação feminina que nada!, a nossa!”, “que a gente se emancipe primeiro e, depois, quando nós, os homens, estivermos emancipados e formos livres, daí a gente vê”.

Com ideias humanitárias e libertadoras como essas foi recebida a nossa iniciativa. […] Se vocês querem ser livres, nós temos muito mais motivos do que vocês. Duplamente escravas da sociedade e dos homens, acabou aquela coisa de “Liberdade e Anarquia e as mulheres já pra pia”. Saudações!4

Essa busca por um espaço público e social para as lutas das mulheres, esse questionamento às normativas burguesas de esposa, mãe e dona de casa, é também um dos sintomas que as fará em tensão com as feministas sufragistas. Houve aproximações, principalmente nas reivindicações pelo direito à educação, por exemplo, mas houve também muitos afastamentos referente a luta pelo voto como significativo para a libertação das mulheres. As mulheres anarquistas apontavam que apenas votar não levava a emancipação das mulheres, mas apenas colocava algumas (das classes altas, da burguesia) numa condição um pouco melhor. Uma crítica bastante natural vindo do meio anarquista, onde as discussões sobre a participação na democracia burguesa e o papel Estado são fundantes do pensamento.

AS ANARQUISTAS NAS ONDAS DO FEMINISMO

Essas críticas das anarquistas também são muito interessantes para pensar a história da luta feminista, pois de certa forma “antecipam” debates que se tornaram hegemônicos no movimento. A história do feminismo é tratada a partir da ideia de ondas, pensando que apesar de terem um momento principal de emergência de certos temas, essas ondas se conectam: as águas são as mesmas. A primeira onda do movimento feminista é identificada a partir principalmente do movimento sufragista no fim do século XIX e início do século XX. Estava centrado na reivindicação dos direitos políticos (votar e ser eleita), e direitos sociais e econômicos (trabalho remunerado, estudo, propriedade, herança). É em relação a essas feministas que as mulheres anarquistas irão produzir suas críticas.

A “segunda onda” do feminismo surgiu depois da Segunda Guerra Mundial, com uma leitura sobre o papel da mulher na sociedade e as construções de feminilidade. A prioridade foram as lutas pelo direito ao corpo, ao prazer, e contra o patriarcado – entendido como o poder dos homens na subordinação das mulheres. Um dos lemas desse momento foi “o privado é político”, e esses movimentos tiveram grande visibilidade nos anos 60 nos Estados Unidos e Europa. Muitos desses temas esses já tratados pelas mulheres anarquistas desde o fim do século XIX, como contracepção, aborto e direito ao prazer.

É a partir dessa segunda onda que surge o conceito de gênero. Para entender o conceito é necessário pensar na trajetória do movimento feminista. Durante a segunda onda se realizaram muitos grupos de mulheres e movimentos feministas, que reivindicavam a categoria “Mulher”, em oposição a ideia de universal masculino5. Com o tempo surgiram críticas em relação a ideia de “Mulher”, como se houvesse algo que fosse comum a todas as mulheres. Essas críticas surgiram principalmente pelas mulheres negras, indígenas, trabalhadoras, que reivindicavam que a categoria mulher não era suficiente para explicá-las. Por exemplo a demanda por trabalho fora do lar como forma de libertação, pauta importante das feministas de classe média desse momento, era a realidade desde sempre das mulheres trabalhadoras, e para elas significava apenas mais exploração. (lembremos das anarquistas: nem marido e nem patrão!).

Este debate mostrou que não havia a “mulher”, mas sim diversas “mulheres”, e que aquilo que formava a pauta de reivindicações de umas, não necessariamente formaria a pauta de outras. Assim, a identidade de sexo não era suficiente para juntar as mulheres em torno de uma mesma luta. Isto fez com que a categoria “mulher” passasse a ser substituída, em várias reivindicações, pela categoria “mulheres”, respeitando-se então o pressuposto das múltiplas diferenças que se observavam dentro da diferença. No entanto, apesar dessas diferenças, não era possível esquecer as desigualdades e as relações de poder entre homens e mulheres6.

O que se buscava era compreender o porquê de as mulheres, em diferentes sociedades e tempos, foram e são submetidas à autoridade masculina. Ou seja, entender o funcionamento do patriarcado. Foi a partir desses debates que começou a se utilizar a categoria gênero, a partir dos anos 80, para reforçar a ideia de que as diferenças que se constatavam nos comportamentos de homens e mulheres não eram dependentes do “sexo” como questão biológica, mas sim eram definidos pelo “gênero”, ou seja, ligadas à cultura. O gênero é constituído por relações sociais que estão baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e permeadas por relações de poder. O uso dessa categoria ajudou a entender que não é uma questão biológica, não há na biologia nenhuma justificativa para a ideia de que mulheres são passivas, sensíveis e frágeis e os homens fortes, racionais e ativos, por exemplo. Essas características são produtos de contextos históricos, são construções sociais, logo, podem ser transformadas a partir da ação social. Essa é uma das lutas das mulheres e do movimento feminista.

MUJERES QUE LUCHAN NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA

Para além da pauta feminista, as mulheres se colocaram em luta, ombro a ombro com diversos companheiros, por toda a América Latina. Desde a Patagônia até as selvas nas montanhas de Chiapas, as mulheres são sementes de rebeldia que brotam em solo de luta. Aqui, vamos rememorar alguns momentos emblemáticos e importantes na história latino-americana, um recorte ainda pequeno, sem nos ater em apenas lutas protagonizadas por anarquistas, compreendendo que muitas companheiras tinham outras ideologias ou não professam fé política e ainda assim colocaram sua vida em risco num ato de subversão contra o capitalismo, o Estado e o patriarcado.

1. La Patagonia Rebelde de las Putas

Osvaldo Bayer, em seu livro Patagônia Rebelde7, narra uma histórica greve de trabalhadores da Patagônia que, em 1920, pararam seus serviços em busca de melhores condições de trabalho. A resposta do Estado foi a repressão, que em 1921 levou ao fuzilamente de mais de mil grevistas e simpatizantes da luta, um massacre na história das lutas argentinas. Pouco se conta dessa história e, já na época, muito silêncio se fez sobre o acontecimento. Porém, Consuelo García, Angela Fortunato, Amalia Rodríguez, María Juliache e Maud Foster não aceitaram a brutalidade do exercíto argentino e fizeram sua própria greve em memória dos trabalhadores assassinados.

Conta a história, que depois do massacre, no Porto de San Julián foi avisado à Paulina Rovira, dona da casa de prostituição “La Catalana”, que se preparasse para receber os militares vitoriosos. Quando chegaram lá, os milicos foram avisados antes mesmo de entrarem no local que não seriam aceitos, sendo recebidos pelas trabalhadoras Consuelo, Angela, Amalia, Maria e Maud aos gritos de “assassinos”, “porcos” e com o aviso de que “com assassinos não nos deitamos!”. Com isso, as cinco trabalhadoras foram presas e levadas ao calabouço da cidade, onde ficaram por um tempo. As putas rebeldes da Patagônia recusaram oferecer seus serviços a assassinos fardados e foram valentes para rememorar uma das maiores matanças da história da Argentina contra seu povo.

Pixo em El Alto, cidade boliviana nas proximidades de La Paz e considerada a mais revolucionária da Bolívia. Traduzindo, o pixo diz: “que teu protesto não seja um insulto às mulheres, às putas e às mães”.

2. Anarcossindicalismo das mulheres bolivianas

“A gente disse: ‘vamos organizar as mulheres!’ Algumas queriam, algumas não… Mas mesmo assim dissemos: ‘Que se faça um sindicato em cada lugar’. Então foram organizados doze, treze sindicatos, cada um fez seu próprio estandarte.”

Petrolina Infantes

Na Bolívia8, no início do século XX, tivemos uma presença muito forte do anarquismo entre as trabalhadoras e os trabalhadores. Muitos sindicatos e federações se diziam anarcosindicalitas, como é o caso da Federación Obrera Local (FOL)9 – fundada no início de 1927 e que funcionará até meado dos anos 50. Dentro da FOL, a presença das mulheres é forte, principalmente depois da Guerra do Chaco (1932 – 1935) quando a quantidade de mulheres trabalhadoras aumenta. Isso contribuiu para uma prática pautada na igualdade entre gêneros nas organizações anarcossindicalistas, culminando em uma autonomia organizativa das mulheres e na fundação, em 1927, do Sindicato Femenino de Oficios Varios.

Posteriormente, é fundada a Federación Obrera Femenina (FOF) que será resposável por impulsionar a organização das mulheres nas mais diversas categorias e locais de trabalho, chegando a aglutinar na FOF cerca de 60 sindicatos. O primeiro foi o das floristas (“Unión Femenina de Floristas” – 1936), seguido pelo das culinárias, vendedoras de mercados, vendedoras de carne e verduras, viajantes, entre outros. As mulheres, em certo momento, estavam organizadas sindicalmente na maior parte dos mercados de La Paz. Dentro de muitos sindicatos, a grande maioria eram cholas (mulheres bolivianas de origem indígena com cultura de vestimenta e adereços próprios), como um dos principais nomes do Sindicato das Culinarias, a anarquista Petronila Infantes.

Foto do sindicato de culinária com Petrolina Infantes sentada, terceira da esquerda para a direita.

A organização das mulheres foi muito importante para a rearticulação da FOL depois da Guerra do Chaco, assim como para as marchas de Primeiro de Maio que tomavam a Bolívia na época. Como as mulheres contemporâneas a elas no Brasil, as anarcosindicalistas bolivianas confrontaram as mulheres da oliguaquia, que possuiam discurso raso de liberação feminina pautada exclusivamente no voto, boa educação e trabalho fora de casa, crítica apresentada pelas anarquistas inclusive na Convenção Nacional das Mulheres em 1929. Além disso, pregavam o amor livre e possuiam debate contra a instituição do casamento. No mais, com a prática anarquista pautada na luta contra o Estado e o autoristarismo, as mulheres bolivianas organizadas em torno da FOF propuseram não só uma crítica classista à sociedade, como também olharam para as relações de gênero dentro das organizações libertárias que construíram. A consequência disso foram mudanças nos compartamentos coletivos e públicos entre os companheiros, assim como maior respeito dentro de casa, nas relações familiares e outros âmbitos da vida privada.

3. Luta das Mulheres nas Ditaduras Civis-Militares do Cone Sul

Um dos importantes momentos do movimento feminista e da luta das mulheres no Brasil e em todo o Cone Sul foram as experiências de ditaduras tanto aqui como na Argentina, Uruguay, Chile, Paraguay e Bolivia.

As décadas de 1960 e 1970 foram muito importantes para os movimentos políticos e organizações de esquerda e, apesar de no Brasil o movimento anarquista ter estado desarticulado frente à repressão10, não podemos negar a importância desse período para as organizações de enfrentamento ao capital de diferentes matizes teóricos ou ainda citar as importantes organizações anarquistas de outros locais, como todo o trabalho político e teórico realizado pela Federación Anarquista Uruguaya (fAu).

Esse foi um momento em que as mulheres cerravam as fileiras de diferentes organizações políticas de esquerda, de movimentos estudantis e movimentos sindicais em números significativos. Estiveram presentes particularmente nas organizações de luta armada, dado importante a ressaltar pois as organizações armadas eram espaços bastante militarizados, onde as questões de gênero ficavam mais tensas. É a partir dessas experiências que muitas mulheres questionaram posicionamentos das organizações de esquerda e entraram para a luta feminista11.

As mulheres também protagonizaram lutas importantes do período, como as demandas por verdade e justiça, mobilizando elas próprias esteriótipos de gênero: as madres da Praça de Maio puderam protestar ainda mais em busca de suas filhas e filhos presos, torturados e mortos pelo Estado argentino pois não se apresentavam enquanto um fazer político, mas mães que buscam um filho desaparecido. As fraldas de pano em suas cabeças marcavam o que sempre se esperou das mulheres: que cuidem de seus filhos. As madres e tantas outras mães pelo Cone Sul subverteram e lutaram a partir de espaços considerados tradicionais mostrando as imensas possibilidades e forças que as mulheres e seus diferentes movimentos podem ter.

Destacamos, por ser uma experiência de caráter libertário, a luta das mulheres junto à fAu, como da militante Elena Quinteros Almeida. Professora e parte da ROE (Resistencia Obrera-Estudantil), Elena foi presa em 26 de junho de 1976 pela ditadura uruguaia e submetida a intensas torturas, foi assassinada pelo Estado no Batalhão de Infantaria Nº13, em Montevideo, e a data de sua morte ainda permanece incerta.

Elena Quinteros Almeida, militante da fAu e ROE, foto sem data.

Além de Elena, muitas mulheres anarquistas somavam nas fileiras da fAu durante a ditadura uruguaia, inclusive na luta armada urbana. Em 1967, a fAu entra na clandestinidade, que durará até 1971, e realiza muitas ações através de seu braço armado, a OPR-33 (Organización Popular Revolucionaria 33 Orientales). As ações iam desde sabotagens, expropriações financeiras, sequestros de dirigentes políticos e patronais, ao apoio armado às greves e ocupações de fábricas. Com uma crítica ao foquismo e uma estratégia própria12, a OPR-33 foi a segunda maior força armada de esquerda no país, atrás do MLN-Tupamaros, e cumpriu importante papel na luta contra a ditadura uruguaia. Segundo relato de uma companheira, no livro Acción anarquista – Uma historia de FAU (tomo 2), a OPR-33 era uma organização fundada na boa relação entre militantes, com valores de solidariedade e respeito mútuos, como também dispunha de espaços de avaliação interna.

Para exemplificar o que eu estou dizendo, eu vou contar uma experiência pessoal. Quando eu tinha 20 anos, isso faz tempo, eu era uma mulher com pouca experiência de vida. Enquanto eu estava realizando uma tarefa específica de informação, eu me encontrei com uma pessoa que era um companheiro que eu não conhecia, nunca tinha visto ele. Eu fui então com ele realizar uma tarefa militante. Enquanto estava sendo realizada a tarefa, esse companheiro tentou me seduzir, me tirar da tarefa em que estava e ter uma relação pesoal. Essa situação me abalou e me desagradou totalmente, sem deixar a tarefa de lado. O encarregado da equipe escutou meu relato crítico, me entendeu e ajeitou a situação de maneira que isso nunca mais acontecesse. Essas coisas não passavam desapercebidas nem eram toleradas. Esse ambiente dava tranquilidade e demonstrava que os valores não eram palavras vazias.

A outra experiência que acredito importante transmitir é que, na cadeia, nós como Organização mantínhamos uma relação política normal com as outras organizações. Em determinado momento contamos a história da nossa Organização e muitas companheiras de diversas organizações se surpreenderam. Chamou a atenção delas o respeito e a solidariedade que nós praticávamos. Elas se surpreendiam com a importância que nós dávamos a valores que as organizações delas não praticavam coditianamente na militância.13

4. Desde abaixo e a esquerda estão las zapatistas

“Porque somos mulheres que sofrem;

mas também somos mulheres que pensam ou se organizam.

E, sobretudo, somos mulheres que lutam.”

Comandanta Amada, na abertura do II Encuentro de Mujeres que luchan (2019)

De dentro de um México marcado pelas relações coloniais, fundado no racismo e no genocídio dos povos originários, levanta-se no primeiro raiar de 1994 um movimento indígena-campesino nas selvas das montanhas do Sul. O levante zapatista, ou neozapatista, traz em si a memória das lutas no início do século XX, onde a Revolução Mexicana, aos passos de Emiliano Zapata, os irmãos Flores-Mágon e tantos campesinos rebeldes, fez justiça pelos debaixo. Seguindo a mesma chama revolucionária, décadas depois, temos o Exercíto Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) fazendo de terras em Chiapas um território autônomo e de organização popular. Esse movimento trouxe consigo os debates de gênero e a discussão em torno da presença das mulheres na luta revolucionária, em uma região marcada por um alto índice de violência doméstica, forte divisão do trabalho entre gêneros e analfabetismo feminino14. O movimento zapatista é tido como uma referência em apresentar dentro de suas demandas mais básicas, desde sua aparição pública, a questão do direito das mulheres.

Na história zapatista, muitas companheiras e companheiros não tem nome ou rosto público. Algumas, no entanto, possuem nome que nossos corações rebeldes mantem vivo na história porque a flor da palavra não pode ser facilmente morta. Uma delas é Comandanta Ramona15, indígena tsotsil, que na última noite do ano de 1993 desceu à San Cristóbal de Las Casas acompanhada de centenas de companheiras e companheiros que formavam o Comité Clandestino Revolucionario Indígena – Comandancia General del EZLN. Entre feitos importantes dos quais participou, está a escrita da Ley Revolucionaria de Mujeres16, documento que prevê igualdade entre homens e mulheres dentro de suas casas e nos campos de batalha, aprovado por consenso dentro do EZLN poucos meses antes de sua aparição pública. Junto com a Comandanta Susana, em quatro meses percorreu todas as comunidades zapatistas da época para que em cada assembelia comunitária fosse aprovada a importante lei das mulheres17.

Além de um marco para o feminismo dentro da luta revolucionária, na perspectiva da mulher indígena desde abaixo e a esquerda, as zapatistas cumprem um papel importante na construção de um novo mundo a partir do seu cotidiano nos territórios autônomos e também no incentivo à organização das mulheres. Organizam, desde 1994, encontros internacionais estimulando a participação de mulheres rebeldes de todo o mundo, como o Encuentro Internacional de las Mujeres que luchan. Escrevem comunicados na tentativa de fazer crescer as lutas coletivas, pois desde sua aparição pública acreditam na importância da disputa de narrativa com os poderosos e o Estado, e procuram nos documentos manter linguagem inclusiva a mulheres, pessoas trans e não-binárias. Ensinam que de tudo se faz arma enquanto em guerra contra a hidra do capitalismo, desde que o coração esteja cheio da mais alegre rebeldia.

Na parede se lê: “Desculpem os incômodos, isso é uma revolução”.

Cartaz do Primeiro Encontro Internacional de Mulheres que lutam, realizado em território zapatistas em 2018.

Comandanta Ramona ao lado do então Subcomandante Marcos.

5. Mujeres Creando um outro mundo

Mujeres Creando18 é um movimento anarquista feminista boiliviano que se utiliza do pixo e de intervenções criativas como instrumento de luta, fazendo da rua seu principal campo de batalha. Nascido em 1992 em La Paz, é uma referência no debate político da Bolívia, com críticas não só a violência de gênero e ao patriarcado, mas às políticas neoliberais; à cooptação tecnocrata das pautas de gênero pelo Estado; ao governo de Evo Morales (MAS-IPSP; 2006-2019); e também à Igreja e às Forças Armadas19.

Não se entendem como artistas, mas como agitadoras de rua, com certa força social no país. Um dos momentos em que isso pode ser observado é em 1997, quando uma greve de fome puxada pelas feministas foi decisiva para a libertação da mexicana Raquel Gutiérrez, presa por ser parte de um grupo indígena boliviano de luta armada, o Exército Guerrilheiro Tupac Katari. Além de Raquel, a ação conquistou a liberdade de todas as presas e presos acusados de subversão que vinham sofrendo com a lentidão da justiça, entre eles o ex-vicepresidente pelo MAS-IPSP, Álvaro García Linera. Além disso, outra greve de fome em 2003 exigia a renúncia do então presidente Gonzalo Sánchez de Lozada (MNR) e teve a adesão de mais de 400 pessoas das classes média e altas de todo o país. Essa ação, junto com a revolta protagonizada pelo povo mais pobre nas ruas, levou a renúncia do presidente na sequência.

Reconhecemos a força de propoganda que o movimento possui, assim como o peso dentro do debate político nacional. Além de tomar as ruas com denúncias importantes para inflar a luta social e expor contradições da sociedade boliviana, elas dedicam seu tempo em construir outros espaços fundamentais na luta anti-patriarcal e na proteção das mulheres vítimas de violência. Editam o jornal “Mujer Pública”, possuem uma estação de rádio (“Radio Deseo”) e uma casa-café no centro de La Paz (“La Virgen de los Deseos”), local que atende vítimas de violência doméstica, dá apoio jurídico e auxilia mulheres em busca de um emprego.

Nem a terra nem as mulheres somos territórios de conquista”.

No primeiro pixo se lê: “se há cumplicidade é porque há impunidade”, seguido por “o feminicídio é um crime do Estado patriarcal”.

6. Marea Verde: a luta nas ruas pelo aborto legal, gratuito e seguro

Desde 2005, organizações feministas, sindicais, estudantis e territoriais da Argentina se unem em torno de uma pauta importante para as pessoas com útero: a garantia do aborto em clínicas e hospitais públicos de forma gratuita, segura e sem nenhum risco de criminalização. A Campanha pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito20 tomou as ruas nas últimas décadas e fez toda a América Latina tremer com a gigante onda verde que se formou. Na Argentina, desde 1986 acontecem anualmente os Encontros Nacionais de Mulheres, instância organizativa importante do movimento feminista, que impulsionou mobilizações históricas nas ruas pela legalização do aborto (os “pañuelazos verdes”); assembleias de bairros; a luta das professoras pela garantia de educação sexual integral nas escolas; a organização sindical e estudantil; e muitos outros encontros de mulheres, lésbicas, trans, travestis e não bináries. Por isso, o Estado argentino se viu sem outra saída a não ser aprovar a Lei de Interrupção Voluntária de Gravidez em 2020.

A vitória nas ruas do povo, principalmente das mulheres e pessoas com útero, pelo direito ao aborto são resultado de anos de organização em torno da pauta, que seguem desde o fim do século XIX. Companheiras anarquistas na Argentina vêm desde baixo, com suas irmãs da classe trabalhadora, construindo uma história de resistência contra o patriarcado, o capitalismo e a dominação do Estado. Os panos verdes (“pañuelos”), inclusive, trazem a memória das Mães da Praça de Maio e seus panos brancos, que já mencionamos anteriormente.

Há muita luta ainda pelos direitos reprodutivos de pessoas com útero, a fim de garantir autonomia para escolher e apoio à decisão. No Chile, por exemplo, onde a maré verde também tem tido muito força na última década, as companheiras libertárias lutam para além da reivindicação ao Estado pela lei, mas desde já promovendo a autonomia reprodutiva com informação e redes de apoio coletivo para possibilitar o procedimento. O mesmo também ocorre no Brasil, onde, sem a legalização, a maioria das mulheres que morrem em abortos clandestinos são pobres e negras, reforçando a relação entre o racismo e as políticas de Estado. Poucos países da América Latina, além da Argentina, possuem o aborto como uma prática legalizada e amparada pelo setor público de saúde; em 2021, são apenas Uruguai, Cuba, Guiana e Guiana Francesa. Ainda há muitas ruas para a maré verde tomar e é necessário muita luta e organização desde baixo para que seja garantido o direito de decidir sobre a maternidade e o próprio corpo.

Os “pañuelos verdes” tomando as ruas da Argentina em manifestação em 2020

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1 Apesar de sua participação em organizações de mulheres e seu apoio a lutas operárias, Maria Lacerda sustentou posições que também se afastam de propostas nossas como a defesa da organização política de anarquistas e a centralidade da atuação anarquista nos movimentos de massas.

2 No Brasil, as mulheres só conquistaram o direito ao voto em 1932.

3 Emma Goldman era uma anarquista nascida na atual Lituânia e que viveu a maior parte de sua vida nos Estados Unidos. A maior parte de sua obra foi escrita na virada e início do século XX, sendo quase contemporânea à Maria Lacerda.

4 No “Apareció Aquello”, artículo publicado en La Voz de la Mujer.

5 Por exemplo quando falamos “os homens” querendo nos referir a “seres humanos”. Essas feministas questionavam como o universal era masculino e na verdade não abarcava as questões especificas que envolviam todas as mulheres, sendo necessário utilizar a ideia de mulher.

6 Todo esse debate é baseado no texto PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. História [online]. 2005, vol.24, n.1, pp.77-98. ISSN 1980-4369 <http://dx.doi.org/10.1590/S0101-90742005000100004>.

7 Livro La Patagonia Rebelde, do historiador argentino Osvaldo Bayer. Disponível em: http://www.fondation-besnard.org/IMG/pdf/Bayer_Osvaldo_La_Patagonia_Rebelde.pdf.

8 Sobre o anarquismo na Bolívia no início do século XX, como também sobre a participação das mulheres anarquistas na luta de diferentes categorias de trabalhadoras, recomendamos o livro: LEHM, Zulema; CUSICANQUI, Silvia Rivera. Los artesanos libertarios y la ética del trabajo. Taller de Historia Oral Andina, La Paz, 1988. Esse é a fonte do recorte aqui apresentado.

9 No Brasil, historicamente predominou a corrente do sindicalismo revolucionário e não do anarcossindicalismo, como na Bolívia. Ainda é essa defesa que fazemos enquanto CAB, de organizar a luta sindical sem corte específico de linha ideológica, com a intenção de agregar o máximo de companheiras e companheiros nos instrumentos de luta.

10 A repressão ao anarquismo brasileiro em 1969 desorganizou sua incipiente e modesta base social mobilizada e praticamente condenou o anarquismo à semiclandestinidade. Some-se a isto, o fato de não haver uma instância política própria do anarquismo (uma organização política) que pudesse lidar com a mudança conjuntural de forma coletiva. Para conhecer a fundo o movimento anarquista no período recomendamos a tese de Rafael Viana: SILVA, Rafael Viana da. Um Anarquismo Latino-americano: Estudo Comparativo e Transnacional das Experiências na Argentina, Brasil e Uruguai (1959-1985). Tese. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica,RJ, 2018. Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=6355192.

11 Sobre a participação das mulheres nas esquerdas do Cone Sul e o movimento feminista ver o livro Gênero, Feminismos e Ditaduras no Cone Sul https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/194290/03062011-101945feminismo-e-ditadurasfinal2.pdf?sequence=1.

12 Para mais informações, indicamos o documento El Copei da fAu, disponível no site da organização: http://federacionanarquistauruguaya.uy/copei-1a-parte-documentos-de-fau-1972/ (parte 1) e http://federacionanarquistauruguaya.uy/copei-2a-parte-documentos-de-fau-1972/ (parte 2). A proposta elaborada no documento defende a atuação articulada no movimento de massas e na luta armada; por esse motivo, a fAu também manteve a atuação na ROE, que era a segunda maior força no movimento de massas uruguaio, atrás do Partido Comunista.

13 Trecho do tomo 2 do livro “Acción anarquista - Uma historia de FAU” de Juan Carlos Mechoso, p. 283.

14 Sobre a situação das mulheres indígenas no Sul do México antes do levante zapatista, há algumas informações na dissertação de Priscila da Silva Nascimento: NASCIMENTO, Priscila da Silva. Mulheres zapatistas: poderes e saberes. Uma análise das reivindicações das mulheres indígenas mexicanas na luta por seus direitos – anos 1990. Dissertação. Universidade Estdual Paulista, Maírilia, SP, 2012. Disponível em: https://www.marilia.unesp.br/Home/Pos-Graduacao/CienciasSociais/Dissertacoes/nascimento_ps_me_mar.pdf.

15 Comandata Romana foi uma das principais vozes públicas do EZLN. Faleceu em 2006. É possível encontrar vídeos de suas falas públicas na internet, incluindo esse feito em sua homenagem em 2018: “Comandanta Ramona #MujeresQueLuchan”. Disponpivel em: https://www.youtube.com/watch?v=cArq3X24aFA.

16 A Ley Revolucionaria de Mujeres é um documento que possui dez pontos e atesta a presença das mulheres nas fileiras do EZLN, ombro a ombro com os companheiros. O texto completo pode ser acesso no Enlace Zapatista, através do link: http://enlacezapatista.ezln.org.mx/1993/12/31/ley-revolucionaria-de-mujeres/.

17 Uma discussão mais aprofundada sobre a lei e suas implicações pode ser lida em MARCOS, Sylvia. Actualidad y Cotidianidad: La Ley Revolucionariade Mujeres del EZLN. Sem data. Disponível em: https://www.vientosur.info/IMG/pdf/la_ley_revolucionaria_de_mujerescideci.pdf.

18 Há algumas diferenças entre o posicionamento do coletivo Mujeres Creando e o nosso quanto anarquistas especifistas. Além de defendermos também nos organizar junto a companheiros homens, defendemos que a luta feminista se dá também dentro dos movimentos de massa, criando uma aliança do conjunto das classes oprimidas em sua busca por construir poder popular.

19 A referência é um livro-arte do próprio coletivo intitulado “Mujeres grafiteando… más”, impresso em 2009, com texto de Mujeres Creando, Helen Álvarez Virreira e María Galindo.

20Sobre a Campanha pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito na Argentina e uma posição especifista sobre a aprovação, há a nota da Federação Anarquista de Rosário, Organização Anarquista de Córdoba e Organização Anarquista de Tucumán de 31 de dezembro de 2020, traduzida pela Coordenação Anarquista Brasileira. Disponível no site da CAB: http://cabanarquista.org/2021/01/05/argentina-e-lei-pela-luta-das-de-baixo/

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